sábado, 28 de fevereiro de 2009

EFEMERIDADES


LEITURA DE JANEIRO 30/01/2009

TEMA:
EFEMERIDADES

ATRIZES:
HEBE ALVES
MIRELLA MATOS

CANTORA:
NANCYTA

Textos de:
Guillaume Apollinaire
Clarice Lispector
Claudia Barral
Jorge Mautner


Zulmira.

Um dia Lúcia quis olhar pra Zulmira e não pôde. Teve pânico. Não sabia o que estava acontecendo entre as duas, não podia olhar-lhe na cara. Não é normal, entre amigas. Zulmira era amiga. Não era? Era porque um dia ela disse. Depois daí nada mudou. Agora não podia vê-la. Quando cruzavam os olhos, ficava enjoada.
Mas o que é isso que acontece? O que acontecia é que ela estava sentindo e estranhava. Sentia raiva, ódio. Foi ao espelho e viu a sua expressão de fúria. Agora estava pronta para encarar Zulmira, já sabia quem ia ser.
Sabia também quem eram os amigos. Não sabia? Se Zulmira era boa, por que a odiava? Pensou em Zulmira, na forma como a tratava, na forma como era tratada de volta. Seu ódio explodiu como um vulcão. Quis cravar as unhas no rosto da amiga. No rosto feio da amiga. O problema era esse: Lúcia era bonita, Zulmira era feia. Lúcia era o brinquedo, o troféu, o imã, o objeto da sutil perversidade de Zulmira. Uma vez, Lúcia lhe pediu um sapato emprestado para um encontro e estava animada, teve que voltar à sua casa algumas vezes até Zulmira lhe dizer que não tinha mais o sapato. Noutra ocasião, Zulmira deu fim no gato de Lúcia só para vê-la chorar.
Lúcia era bonita, mas era uma, de forma que Zulmira se refestelava com os restos. Quando os urubus chegavam, ela comia ensopado de urubu, comia os rejeitados, comia as sobras do prato de Lúcia. Sendo feia, como era, não havia outro jeito de se aproximar dos homens. Lúcia era a isca, ela era é hiena, os homens são cruéis.
O amor? O amor viria depois. Viria sem ver cara, cheio de perdão e glória, o amor é incêndio e força. Mas Zulmira era o ódio.
Aproveitadora, ambas sabiam. Nada precisaria ser dito. Ela sentia e bastava.
Durante muito tempo esteve nua, não sabe quem lhe feriu, estava ausente.
Agora voltava a ver uma fresta de luz dentro do seu próprio breu, estava se vestindo de emoções, nascia berrando e era bom. Era um milagre, como a vida. Estava alegre e atenta, era uma mulher humana, inteira carne. Sua respiração era pesada e quente, ela não sabia nada, estava forte.
Esperava o momento de encontrar a outra, queria olhá-la com ódio, queria senti-lo, gastá-lo. A leoa ia expulsar a hiena. Ia comer em paz. Estava feliz, não queria falar. Tinha ódio e estava feliz. Aceitava. Estava sendo amiga de si mesma.
Eu me aceito, disse em voz alta. E o primeiro dia da sua vida começou a amanhecer.
(Claudia Barral)

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